sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Marcas

Ao se levantar na primeira manhã viu a tatuagem, um par de olhos localizados logo acima do joelho, de olhar direto a encontrar o seu, assustou-se, primeiro com o fato, segundo, com a ameaçadora inteligência implícita naqueles olhos.

Na segunda manhã, levantou-se, havia ali abaixo uma boca também, aberta como que prestes a fazer funestas previsões, com princípios de dentes desenhados, morava sozinho, quem e com que propósito fazia isso com ele à noite?

Dormiu com medo do que na terceira manhã, o que a boca finalmente lhe diria.

Fábio Ochôa

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ta-da-da-daaaaam

Quando Henrique nasceu, algo muito estranho aconteceu na sala de parto: vindo de lugar algum, todos começaram a ouvir Assim Falou Zaratustra, de Strauss, Henrique era o único ser humano cuja vida vinha –por insondáveis caprichos divinos- acompanhada de uma trilha sonora,

Não sabia se isso era bom ou mal, ele simplesmente não conhecia outro meio de viver: nos dias de sol ressoava pelos céus Here Comes the Sun, nos de chuva, Raindrops Keep Falling on my Head, quando descobriu que foi traído, ecoou de maneira atordoante a quinta de Beethoven por toda a estação, Henrique não tinha outra opção a não ser ser transparente, imagine olhar para alguém e repentinamente ecoar Love is in the Air pela sala, ao primeiro beijo soar Careless Whisper por todo o bar?

Henrique gostava de Cole Porter, de Baden Powell e Elis Regina, mas a trilha de sua vida insistia em ser escancaradamente pop, ironias do destino.

Fábio Ochôa

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Be or not to be?

- Como é que você perde tanto sua identidade? – Não entendia ela.

Não havia como explicar a ela: um dia simplesmente se deu conta que sem identidade, poderia ser qualquer pessoa e em contrapartida qualquer pessoa poderia ser ele, era isso, apenas isso.

E repentinamente, como em uma multiplicação divina, diversos Augusto Barros andavam pelas ruas, pelas cidades, pelos países, pelas carteiras alheias do mundo enquanto o Augusto original vagava sem o peso de ser quem era, livre como um cidadão anônimo de um país fantasma; mas como explicar a ela, como?

Fábio Ochôa

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A Racha

Começou como um risco em uma folha, feito por um simples lápis.

Segundo testemunhas, o traçado feito pela mão de uma criança birrenta atingiu o limite da folha e então se estendeu pelo resto da mesa, com pressa e urgência, sem mão alguma a manipular e logo se revelou o pior: não era um risco, era uma racha, a partir a mesa em dois, a seguir pelo chão, a ganhar as paredes, atingindo, partindo, derrubando, matando, cortando, sem parar, em poucos dias atingiu as proporções de uma catástrofe global.

Dividiu casas, mares e continentes, redefiniu mapas e tão abrupto como começou, parou, fragmentando para sempre a certeza do que que era afinal a realidade.

Fábio Ochôa

A Toy Story

“É o Falcon dentro da caixa, eu disse que ele ia voltar, canalhas” defendeu com veemência Coronel Hawk, Falcon para ele, era em muitos sentidos um irmão mais velho, uma versão maior de si mesmo, Hawk entendia isso, nunca saíra completamente da sua sombra.

Debateram durante mais alguns momentos sobre quem estaria repousando dentro da caixa embaixo da árvore natalina, nunca admitiriam, mas os bonecos adoravam esta data, era sempre a chance de conhecer figuras novas, “será que finalmente é uma Barbie?” arriscou Lion, andava precisando de uma companhia feminina, alguns suspiraram.

Dentro da caixa embrulhada, um Predador esperava paciente, afiava as garras e sorria com gosto.

Fábio Ochôa

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A Metamorfose

Um dia Gregor Samsa acordou e a manhã trouxe a funesta novidade: não era mais homem, era uma barata.

Os arranjos nos dias que se seguiram a essa pequena tragédia foram complexos: como apoiar os óculos em um rosto onde nariz não existia, como contornar o considerável gasto a mais com sapatos?

Gregor Samsa fora homem de fibra, como barata não seria diferente, seguiu, ignorou as adversidades e arranjou um belo emprego em Brasília.

Fábio Ochôa

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Vestígios

Todos os dias a toalha estava suja, como era possível alguém carregar tanto preto nas mãos, seria ele petroleiro e não advogado, perguntava-se ela.

Era o ritual de todas as noites, primeiro, o barulho da água correndo, das mãos lavadas, das mãos roçando na toalha, uma, duas vezes e então ela podia virar e dormir em paz.

No dia seguinte, uma nova toalha branca, esperando paciente pelas marcas e mazelas que a vida e a profissão alheia lhe traria.

Fábio Ochôa

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Oh, Orwell

Não sabia mais o que fazer, sua função era matar porcos, apenas isso, como poderia então sentir algo por algum deles?

Porque aquele em especial, não sabia – até nome tinha dado a ele: Orwell - matar ou não matar, matar ou não matar, eis a questão; se ele não fizesse, outro o faria, resolveu o dilema deixando o cercadinho aberto, todos fugiram, Orwell ficou.

O que o prendia não era o cercado, eram os laços do afeto, ah Orwell, seu levado.

Fábio Ochôa

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Vôo

Foi na segunda grande guerra que seu avião foi abatido, nunca mais alçaram vôo, piloto e avião.

A asa em chamas, o peito perfurado por balas, o que ele pensou, quando teve a certeza de que voar e tampouco viver – sinônimos para aquele homem- não eram mais possibilidades?

Segurou o manche, ergueu o nariz do bólido aéreo em direção ao sol, a escolha era simples – o barro ou as estrelas- e então concluiu que nuvens seriam o travesseiro ideal para seu último sono.

Fábio Ochôa

Bond, Jorge Bond

O primeiro nome -Francis – não era de caminhoneiro, o segundo –Jorge- era e há muito tempo Francis Jorge inventou um jogo para aliviar a solidão das estradas à noite.

Dirigindo, fingia ser um agente secreto disfarçado de caminhoneiro... seguindo a sua lógica, embaixo dos feijões haveriam ogivas nucleares que poderiam acabar com o mundo livre, açúcar, nunca era só açúcar, mas sim antraz, “encomenda”, um código, “carga”, acróstico de Comando de Ação e Retenção para Grupo de Agentes e cada quilômetro percorrido, um motivo a mais para se perder em suas mentiras tão inócuas.

A cada quatro dias, quando chegava em casa, Francis Jorge era um agente secreto que fingia ser um caminhoneiro fingindo ser pai de família.

Fábio Ochôa

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

666 e Ninguém Atende

Ainda era estudante de direito quando teve este plano para chegar à notoriedade.

Teve que sacrificar dúzias de coelhos e pelo menos quatro cabras, usando uma ridícula máscara de bode, tudo isto para conseguir aquele telefone: (66) 666-666, óbvio, que outro número a besta teria?

Ansioso, fez um interurbano na segunda, outro na terça, outro na quarta, em vão, se ele não atender –pensou- como conseguiria se candidatar a advogado do diabo?

Fábio Ochôa

Velho Lênin velho

Recitou para si mesmo: escrever, escrever, escrever, até o dia em que a mente ceder, Lênin, concordou, com seu olhar de líder emoldurado na parede.

Suspirou o escritor, velho comunista, porque todas as utopias tem sempre que acabarem?

E em seguida, voltou a martelar as teclas.

Fábio Ochôa