terça-feira, 31 de agosto de 2010

Câmera

Hamilton comprou a câmera aos 14 anos, nunca entendeu porque ela só fotografava dragões, pombas e sombras, até que o velho chinês do antiquário explicou: ela fotografava almas, era isto, única.

Hamilton respirou aliviado, fez fortuna retratando pessoas e as pombas, sereias, sombras, tigres e dragões que elas escondiam dentro de si.

Nunca tirou uma foto de si mesmo.

Fábio Ochôa

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Grosso

Yeshua estava ficando com o sangue grosso, ao menos era o que dizia o laudo médico, que mediante muita insistência, fizera.

Era a dieta inadequada, afirmou o médico com aquela certeza de quem faz o juramento de Hipócrates, Yeshua era âncora do jornal local, ele sabia o que estava engrossando seu sangue: eram as notícias, o banho de sangue de cada noite, quem ele achava que era para pensar em enganá-lo?

Naquela noite olhou o prompter, piscou, respirou fundo, e então anunciou que uma mãe matara e comera os fígados dos próprios filhos.

Fábio Ochôa

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Marcas

Ao se levantar na primeira manhã viu a tatuagem, um par de olhos localizados logo acima do joelho, de olhar direto a encontrar o seu, assustou-se, primeiro com o fato, segundo, com a ameaçadora inteligência implícita naqueles olhos.

Na segunda manhã, levantou-se, havia ali abaixo uma boca também, aberta como que prestes a fazer funestas previsões, com princípios de dentes desenhados, morava sozinho, quem e com que propósito fazia isso com ele à noite?

Dormiu com medo do que na terceira manhã, o que a boca finalmente lhe diria.

Fábio Ochôa

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ta-da-da-daaaaam

Quando Henrique nasceu, algo muito estranho aconteceu na sala de parto: vindo de lugar algum, todos começaram a ouvir Assim Falou Zaratustra, de Strauss, Henrique era o único ser humano cuja vida vinha –por insondáveis caprichos divinos- acompanhada de uma trilha sonora,

Não sabia se isso era bom ou mal, ele simplesmente não conhecia outro meio de viver: nos dias de sol ressoava pelos céus Here Comes the Sun, nos de chuva, Raindrops Keep Falling on my Head, quando descobriu que foi traído, ecoou de maneira atordoante a quinta de Beethoven por toda a estação, Henrique não tinha outra opção a não ser ser transparente, imagine olhar para alguém e repentinamente ecoar Love is in the Air pela sala, ao primeiro beijo soar Careless Whisper por todo o bar?

Henrique gostava de Cole Porter, de Baden Powell e Elis Regina, mas a trilha de sua vida insistia em ser escancaradamente pop, ironias do destino.

Fábio Ochôa

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Be or not to be?

- Como é que você perde tanto sua identidade? – Não entendia ela.

Não havia como explicar a ela: um dia simplesmente se deu conta que sem identidade, poderia ser qualquer pessoa e em contrapartida qualquer pessoa poderia ser ele, era isso, apenas isso.

E repentinamente, como em uma multiplicação divina, diversos Augusto Barros andavam pelas ruas, pelas cidades, pelos países, pelas carteiras alheias do mundo enquanto o Augusto original vagava sem o peso de ser quem era, livre como um cidadão anônimo de um país fantasma; mas como explicar a ela, como?

Fábio Ochôa

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A Racha

Começou como um risco em uma folha, feito por um simples lápis.

Segundo testemunhas, o traçado feito pela mão de uma criança birrenta atingiu o limite da folha e então se estendeu pelo resto da mesa, com pressa e urgência, sem mão alguma a manipular e logo se revelou o pior: não era um risco, era uma racha, a partir a mesa em dois, a seguir pelo chão, a ganhar as paredes, atingindo, partindo, derrubando, matando, cortando, sem parar, em poucos dias atingiu as proporções de uma catástrofe global.

Dividiu casas, mares e continentes, redefiniu mapas e tão abrupto como começou, parou, fragmentando para sempre a certeza do que que era afinal a realidade.

Fábio Ochôa

A Toy Story

“É o Falcon dentro da caixa, eu disse que ele ia voltar, canalhas” defendeu com veemência Coronel Hawk, Falcon para ele, era em muitos sentidos um irmão mais velho, uma versão maior de si mesmo, Hawk entendia isso, nunca saíra completamente da sua sombra.

Debateram durante mais alguns momentos sobre quem estaria repousando dentro da caixa embaixo da árvore natalina, nunca admitiriam, mas os bonecos adoravam esta data, era sempre a chance de conhecer figuras novas, “será que finalmente é uma Barbie?” arriscou Lion, andava precisando de uma companhia feminina, alguns suspiraram.

Dentro da caixa embrulhada, um Predador esperava paciente, afiava as garras e sorria com gosto.

Fábio Ochôa